Despontando

Em 1996 Beth Moysés forrou o teto da Capela do Morumbi com vinte e cinco vestidos de casamento unidos entre si. Era como se cada um subisse por sozinho como um balão inflado por seus próprios sonhos. Vestidos não voam e mesmo que voassem o teto os impediria; e mesmo que o telhado não o fizesse, Beth os havia lá fixado. Mas os pensamentos vão longe e por vezes o artista lhes dá roupagens para os tornarem visíveis, como já disse o pintor…
Vestidos de noiva não são feitos só com tecido, agulha, alfinete, linha, botão, brilho e bordado. Também molde e até reforma ou até remendo. Provoca expectativa, às vezes decepção, mas noiva feia será que há? Alguns (poucos) pensam que sim, mas a maioria acha que não. Ao eleger os trajes, Beth também incluiu o que representavam quem
os usou. Não só se referia às vinte e cinco em questão, mas a umas quantas gerações antes delas e outras tantas depois. E lá os vestidos ficaram, como vinte e cinco noivas irmanadas como siamesas, juntas por costura e símbolo, linha e prego. Silenciosos lá ficaram por quase um mês, cada parte presa à outra como a artista havia designado,
respondendo a sua própria natureza e completando a obra. A matéria tendia ao chão, para voltar ao pó; o sonho buscava altura, para evadir-se. Como ex-votos de amores – esperados, achados e perdidos – os vestidos lá ficaram, ainda presos
para se conservarem no alto, apesar de pela gravidade se aproximarem da realidade do chão.
Em exposição realizada dois anos mais tarde Beth levou realmente as noivas para o chão, deixando de modo claro e coerente sua intenção de discutir com seu trabalho questões relacionadas à violência contra a mulher. Seu foco
já estava dirigido à violência ocorrida dentro de casa, com chantagem e sem testemunhas. Desde então faz parte da obra de Beth não só o vestido, o registro, o objeto, a fotografia, o vídeo, mas a reflexão sobre o aspecto dessa violência, o dia a dia dessas mulheres, suas faces e seus percursos.
Na mostra de 1998, o tecido branco, desmontado, apenas aludindo à sua antiga forma e principalmente seu significado não passava desapercebido. O fato de estarem dispostos sobre o assoalho, obstruindo a passagem do público e de
correrem o risco de serem pisados provocava associações imediatas e não raro mal estar com sua equivalência ao ato de pisar a própria noiva e por extensão, todas as mulheres.
Porém a partir de 2000 essas mesmas noivas, antes manietadas e silenciosas deram seu primeiro passo e começaram a caminhar. Em grupo devárias dezenas delas cruzaram a Avenida Paulista interromperam o trânsito e causaram estranhamento. Transeuntes olharam curiosos para aquelas noivas que usavam sapatos de borracha por debaixo das saias arrastando no asfalto, tinham relógio de pulso, olhavam firme para frente e andavam com passo tão decidido
que várias grinaldas escorregavam das cabeças. Os vestidos que usavam eram reais e foram usados por noivas verdadeiras, alguns dos quais foram doados por amigas e conhecidas de Beth, outros foram comprados em lojas de roupas usadas. Todos os trajes já haviam cumprido sua função ritual original e agora desempenhavam a de iniciar uma nova vida – assim como aquelas mulheres. Chamavam a atenção por caminharem juntas, mas cada uma sabia para onde queria ir.
Em 2002 o apoio dado pelas feministas espanholas para repetir o desfile das noivas em Madri, transformou a obra de arte sensível às questões de seu tempo em um ato de manifestação social. Anúncios divulgados em estações de rádios e publicados em jornais reuniram duzentas mulheres transformadas em noivas, de adolescentes a septuagenárias, para expressarem seu repúdio à violência doméstica.
A primeira vez em que Beth não participou efetivamente do manifesto e acompanhou as noivas apenas para fotografar passo a passo o evento foi durante a performance realizada em Brasília em novembro de 2003. A versão brasiliense
assumiu características diversas das anteriores, não apenas no que se refere ao compromisso e atitudes de suas participantes com o assunto, como à seqüência estabelecida pela artista. O grupo era composto por cento e vinte vítimas de violência doméstica, sendo que trinta das quais naquele momento habitavam uma casa abrigo. Como noivas e com buquês de rosas brancas nas mãos, saíram da Galeria Ecco e caminharam por dois quilômetros de avenidas até a catedral.
Em atitude solene uma a uma se aproximaram de buracos previamente cavados no gramado e dispostos em forma de mandala. Silenciosamente ali enterraram os espinhos, talos e folhas de seus buquês, cobrindo-os com as pétalas para retornarem aos lugares de onde haviam saído do círculo ritual.
A atual mostra que Beth Moysés apresenta na Galeria Thomas Cohn traz a violência não como resultado final de uma série de atos, etapa final de situação irremediável ou fado inexorável. Em sua abordagem atual a artista a coloca em
termos de lembrança presente, mas como parte dos sentimentos que não devem ser nem alimentados, reforçados, trancados ou ainda esquecidos. Propõe que tais sentimentos sejam conhecidos, compreendidos e transmutados.
A exposição apresenta três etapas desse momento do trabalho da artista.
A primeira delas, tem como tema a morte enquanto encerramento de um ciclo. Memória do Afeto – Brasília reúne um conjunto de ampliações fotográficas das noivas durante o trajeto até a catedral e durante seu processo. O período de luto e recolhimento diante da dor sentida está no vídeo Despontando nós, sucessão de mãos femininas, velhas ou moças, bem cuidadas ou sofridas, que seguram a haste de uma rosa. Uma após a outra seguram a planta, escolhem um espinho, o quebram com um estalido e com o silêncio rompido exorcizam o equivalente cravado em seus corações, curando feridas. Nós mesmas nos unindo, desatando nossos liames, arrancando lanças cravadas em corações e ressurgindo para o mundo.
A segunda etapa tem a realidade de um período de latência, onde o silêncio é fundamental como elemento para gerador de densidade. É constituído por Almas Prematuras, onde duzentos corações semelhantes aos dos bebês prematuros, modelados a mão em argila branca, lotam uma incubadora. Cita os corações vindos ao mundo antes de totalmente prontos para a vida, mas fortes e capazes de resistir. Estabelece o paradoxo com as almas que uma vez existentes sempre são absolutas, porém que nunca nos sentimos experientes o bastante para a eternidade.
A terceira parte da mostra relaciona-se à Imperatriz. Carta de baralho feita em tecido. Arquétipo da mãe bordado pela mãe, que com linha desenhou ponto a ponto o nascimento em ouro sobre um metro e setenta de tecido muito fino. Dizem as cartas que seu ideal é a perfeição, que seu poder principal é a criação da vida e de formas infinitas. Ama a todos igualmente, recebe os corações e os torna generosos. Seu poder não é tirano, mas amável. Seu peito abriga o ditador, lhe inverte o reinado e nesse acolhimento o transforma, possibilitando o início de um novo tempo.
A Imperatriz marca esse terceiro momento. Foi a última obra a chegar à exposição, mas é a primeira que lá encontramos. Pois dizem as cartas que é por ela que se tem o primeiro vislumbre do amor, o mesmo amor que acalenta as almas prematuras e cicatriza as memórias do afeto.

Maria Izabel Branco Ribeiro
Setembro 2003

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