Forro de Sonhos Pálidos

Ao escolher o teto de uma capela como moldura, Beth Moysés cria, inevitavelmente, um meta-comentário sobre a tradição da arte ocidental. Particularmente, no renascimento italiano, tetos de capelas se tornaram grandes paradigmas da arte, somando obras como o afresco “ Adoração dos Reis Magos”, realizado entre 1304 e 1306 por Giotto na Capela Arena, em Pádua, e, posteriormente, com a história de Adão e Eva que Miguelangelo executou entre 1508 e 1512 para o teto da Capela Sistina, no Vaticano.
Mas o Tom de reverência histórica toma rumo inverso quando a artista substitui a criação pictórica pelo uso direto de materiais extraidos do cotidiano. Num momento de efervescentes discussões conceituais, em que os artistas contemporâneos se envolvem em narrativas que recontam sua própria existência, Moysés costura em seu trabalho tecidos, texturas, ranhuras de uma leitura pessoal de vida. Isso é feito arremessando ao alto uma tapeçaria anonima e coletiva composta de exemplares do grande mito feminino: o vestido de noiva.
Para rediscutir o mito ela se apropria diretamente de seu objeto. Forra estrategicamente o teto da capela com uma soma de 25 vestidos. São vestidos-reais, usados em casamento de amigas, de parentes e da própria artista. São também vestidos-artifícios, comprados, montados, negociados em lojas. Grudados pelas saias, formando um único e longo tecido, os vestidos exibem seus corpetes dependurados, feito lágrimas paradas no ar, recheados apenas com pano. Elevados a altura do teto, cobrindo com o silêncio do branco o templo católico, os vestidos reverberam sonhos, expectativas, juras, promessas. Eles falam de ilusão, da literal ausência de pé no chão. Dependurados pelas saias, corpetes para o chão, os vestidos apontam para um final de conto-de-fadas que virou de ponta cabeça. E que perdeu o rosto. Recheados apenas de pano, vazios, esses vestidos aludem a solidão. Comentam a falta de protagonistas, a ausência de sujeitos para tantos sonhos brancos.
A quantidade de cetim, de tafetá, de tule, de perolas falsas, brocados, rendas e vidrilhos, materiais aplicados a instalação, funciona como uma miríade de interpretações conceituais que se pode costurar a obra. Há vários corpos ali. Todos falam e falam de todas as mulheres.
A multiplicação dos vestidos grudados se amplia como num espelho mágico e multifacetado. Na repetição, a artista opera a ampliação de um campo emocional que reverbera um espaço e um tempo ilimitados. O tempo passa e a primazia soberana e irrefutável do vestido branco permanece.
No desfile de tecidos esbranquiçados, diferenças de tons ensaiam um possível clímax, esfumaçam no ar uma esperada mudança. Mas as pequenas nuances entre o branco , o cinza e o bege dos vestidos funcionam como mecanismos de trompe I’oeil. O tom-sobre-tom limita-se a manchar sutilmente os panos imaculados.
A instalação de Beth Moysés tem um aspecto construtivo que sintetiza sua própria trajetória como artista. Em sua arte, ela exercita consistentemente comentários sobre uma iconografia impregnada de ideologias sobre o feminino.
No inicio dos anos 90, a artista trabalhou com buchas, que aludiam as compulsões com limpeza e purificação e ao pânico de corpos que menstruam. Depois ela trabalhou com construções de meias de seda, que rasgadas, pintadas e reconstruídas, teciam metonimias e clichês da sensualidade.
A partir de 1994, Moysés passou a trabalhar com o símbolo do vestido de noiva. Então, impressas sobre tela, as construções da artista tornavam corpo como metáforas que incluiam colchetes, redes cheias de alianças, panos con manchas de sangue, tules queimados, costurados, ora sujos de pó de café. Avia também botões, meias-calças arrastão, pedaços de tecido dobrados na forma de lençõis nupciais ou de vaginas. Mais recentemente, ela passou a trabalhar com buques e camafeus.
Nessa instalação a artista libera-se do chassi, das molduras, das construções muito elaboradas. Simplesmente costurando vestidos e mais vestidos de noiva, faz um trabalho quase minimal. Mesmo que, paradoxalmente, ele parece saturado de significados.
Beth Moysés é uma artista corajosa. Tecendo comentários sobre a condição feminina, ela não se exime da própria presença na obra. Incorpora seu próprio vestido a voz coletiva do teto da capela, do mesmo modo como, em 1994, usou seu próprio sangue para tingir um véu de noiva.
Ecoando o trabalho de uma geração de artistas contemporâneos, ela substitui a metáfora pelo carimbo da ação pessoal.

Katia Canton

* escritora, critica de artes, docente do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.

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