Amor

Sempre me impressionou a fragilidade do rei no jogo de xadrez. Seus movimentos miúdos, sua lenta evolução pela retícula do tabuleiro, inércia cultivada pela cerca de proteção montada por seu séquito. Sua presença, no entanto, é que justifica a existência de todo seu peculiar exército composto por peças que se distribuem aos pares, à exceção dos peões que se acotovelam em número de 8, que avançam resolutos para diante e para os lados, oferecendo-se como moeda de troca no ataque e na defesa, e da rainha, cuja presença tal como a do rei, seu par, é igualmente solitária, mas que ao contrário de sua quase impossibilidade, desloca-se vertiginosamente, compondo ângulos de noventa graus com linhas diagonais. Neste casamento, o vigor e a desenvoltura estão na rainha mas é o rei quem consagra sua existência, a existência de todos, do próprio jogo que acontece a partir dos dois oponentes que se debruçam sobre uma mesa, frente ao tabuleiro, cada um comandando seu exército por detrás, um branco, outro preto, com um deles a realizar o primeiro lance (o indefectível Peão Quatro da Dama, P4D, embora sejam previstas algumas outras variações), ataque que terá como correspondente natural uma defesa igualmente óbvia, posto que no início os movimentos são previsíveis, demarcados, até que o frágil equilíbrio mantido por forças divergentes que se interpenetram, o tecido invisível enredado pelos fios dos movimentos executados, se esgarça: momento em que o conhecimento de um antagonista pelo outro produz a visão antecipada do que irá ocorrer, e os caminhos a serem percorridos pelas peças na imaginação de um já são, sem que ele saiba, ainda que seja frequente a suspeita, conhecidos do outro, de seu parceiro/oponente – parceiro porque não se joga sozinho; oponente porque no jogo mede-se forças e engendra-se uma vitória e uma derrota -, e é aí que seus lances se transformam em sendas incertas que levarão seu rei ao fim.

Jogos encarnam e prefiguram as relações humanas, não fossem elas mesmas jogos. Será preciso insistir nessa tecla? Beth Moysés diz-nos que sim, e sua trajetória artística vem se desenhando como o inventário e a análise de um jogo em particular, matriz de todos os jogos: a relação entre homem e mulher.

Em suas pinturas/objetos anteriores, a artista construía metáforas a partir do vestido de noiva, esse fetiche imemorial calcado na idéia de pureza, alvo de tanto investimento afetivo, de fantasias e idealizações. Mantendo seu foco nas relações amorosas, do espectro que as ronda em mágoas e traumas, de seus mitos e ritos conexos, a artista foi se aprofundando em discussões mais e mais oblíquas, do que essa presente exposição é exemplar.

Antes mesmo de avançar na relação entre rei e rainha, protagonistas da instalação maior apresentada pela artista, comecemos pelo curioso recurso em fazer uso do jogo de xadrez e montá-lo em escala real na sala da galeria. Porfia de cifra mental, o xadrez impõe a luta silenciosa entre duas pessoas, cada qual armada de peças a serem movimentadas segundo estratégias cujo cálculo objetiva senão vencer ao menos evitar a qualquer custo a capitulação, isto é, à paralisia do empate. Dentro desse restrito território quadrangular, dividido em 64 partes iguais, onde cada personagem tem seu movimento rigidamente estabelecido, o rei é, entre todos, o mais confinado. De certo não foi assim que nos acostumamos a ver o rei; não, historicamente não foi essa imobilidade o predicado definidor da figura masculina. Ao herói, mesmo o monótono Sísifo, cabia o périplo contínuo, como Ulisses, como Hércules, como Lancelot. Dos homens, os deslocamentos lineares sobre o território para a caça e a conquista; das mulheres a circularidade dos movimentos domésticos, a espera, o bordado sobre o colo.

A rainha imaculadamente branca de Beth Moysés está sozinha sobre o tabuleiro igualmente branco. Essa supressão das peças e planos pretos sinaliza a existência de um outro jogo dentro do jogo. O corpo cândido da rainha traz um grande ôco; um vazio cuja forma corresponde a uma versão reduzida da silhueta do rei. O rei atravessa-a: ele é a falta, a parte do corpo da rainha violentamente retirada e que, como enuncia seu tamanho menor, mantêm-se na distância. Com seus movimentos ela o leva consigo por onde quer que vá; ele é o seu móvel.

Agnaldo Farias
Março de 2001

<< VOLTAR/BACK