Beth Moysés: Qual o poder da arte?

Qual a medida do poder da arte no sentido de alterar a vida? A arte pode mudar a realidade?
São essas as questões que frequentemente nos formulamos nos embates de arte-vida ou ao considerar arte e política. Mas mesmo que a resposta não seja positiva, permanece a poética que extrapola o real, e decorrente da criação artística. Na verdade, todo gesto artístico, e portanto, toda criatividade exposta, é um ato político. Seja ela de tendência intimista, conceitual, abstrata, performática ou figurativa, o ato de criar, de expor um ponto de vista através de um trabalho visual constitui uma intervenção na ordem em que vivemos, e portanto, um posicionamento frente à realidade.

Por outro lado a arte sempre foi um fenômeno peculiar à polis, dada sua característica de manifestação, sobretudo a partir de meados do século XIX quando a articulação entre os cidadãos e sua forma de viver se alteram sensivelmente nas aglomerações urbanas cada vez mais densas.

Estas considerações surgem da observação do trabalho desenvolvido nos últimos anos por Beth Moysés. Esta artista não parte de conceitos abstratos nem meramente matemáticos. Seu ponto de partida é o ser humano, mais especificamente. E com ele interage, seja na concepção de suas ações como em suas performances ou nos vídeos – autônomos enquanto criação – decorrências diretas de seus trabalhos feitos em geral in situ, em pleno meio urbano. O objeto de sua atenção é a mulher, na formulação de cada trabalho. A ela se dirige, sobre ela concebe a ação : sua condição, sua dor, a agressão de que é alvo, suas aspirações. Assim, esta artista transita politicamente pelo universo feminino, que é também o seu médium, e com ele dialoga há longos anos. Antes dos anos 2000 – em 1995 – já apresentou um fragmento de vestido de
noiva esticado, retesado num bastidor. Aliás, o vestido de noiva (qual a mulher que não desejou sempre vesti-lo uma vez?) foi sempre emblemático de seu trabalho e identificou-a no meio artístico.
O ano 2000 foi marcante por sua performance no centro de São Paulo, cidade em que reside, quando 150 mulheres desfilaram vestidas de noiva pela Avenida Paulista, artéria tradicional dessa capital. Desde então, Beth Moysés desdobrou esse trabalho em vários outros, sempre mobilizando dezenas de mulheres que sempre se dispuseram a participar de suas ações em vias publicas: Montevideo (Uruguay), Bogotá (Colombia), Xangai, Madrid e outras seis cidades espanholas pelo menos assistiram nos últimos anos a suas propostas. Impressiona sempre a disponibilidade das participantes de seus projetos, sua compenetração nas atuações a que são solicitadas – como captando a densidade da mensagem a comunicar, frequentemente emocionadas pelo teor do evento com o qual se identificam.

Paralelamente aos desfiles urbanos, o círculo, a roda, a união em torno a um centro são disposições constantes nas performances programadas por Beth Moysés, como a lembrar-nos de um objetivo comum a irmanar as participantes de cada evento, como raios que disparam das bordas em direção à idéia que as une . Pode ser uma “mandala” , como um mosaico de
mármore branco carregado cada placa por cada uma delas e colocado pelas próprias sessenta mulheres neste evento – usualmente nas periferias das grandes cidades brasileiras as mulheres costumam colaborar no trabalho comunitário de construção de suas casas – diante do Mosteiro de São Bento em São Paulo. Ou ao delinear sobre as luvas em sua própria mão, as linhas essenciais de suas vidas (Cáceres, Espanha), ou ao executarem trabalhos de modelagem com massa que se assemelharia ao sangue (Murcia, Espanha). A nostalgia e melancolia, algumas vezes, e a dramaticidade, em particular, é uma constante no clima criado a partir destas ações poéticas carregadas de dor, presentes nas obras de Beth Moysés. É o caso, sobretudo, de sua ação em Zaragoza e Salamanca, Espanha, em sua performance “Diluídas em água”. Nessa ocasião mobilizou 40 mulheres que se apresentam, como invariavelmente em suas propostas, de vestimenta branca (“o branco para mim tem o sentido de uniformizar a ação do grupo”, diz a artista, que anseia, assim, por que o gesto ou atitudes de cada uma seja o da união de todas). O avesso do vestido de vinte destas mulheres neste caso, que residem numa Casa-Abrigo em virtude de agressões sofridas, trazem textos/palavras escritos em tinta vermelha por cada uma – uma delas chegou a redigir sobre o avesso, interioridade invisível segredada, uma carta a seu ex-companheiro agressor – . As participantes desvestem estas roupas para lava-las com um alvo sabão que deixa suas bacias plenas de água avermelhada (sangue é dor?), manchada pela lavagem, antes de voltar a vestir as roupas lavadas, agora tornadas rosadas no final do evento.

Assim, há sempre uma alegoria, ou uma narrativa implícita no roteiro de seus trabalhos, que nunca é casual. A beleza plastica está presente no cuidado com a produção de cada performance assim como na excelência da filmagem e edição de cada video, (como em “Y pasa”, em que são novamente enfatizadas as cores branca e vermelha, dominantes em
seus trabalhos).
Em “Dripping”, performance-video em que a artista e sua filha participam enquanto personagens, extraindo – e bordando? – pérolas em vestido de noiva de maneira acurada como uma cirurgia, tem em sua lentidão envolvente uma atmosfera similar à que percebemos em “Extraindo espinhos”, longos talos de rosas dos quais os espinhos são
removidos um a um, com uma íntima e sutil sonoridade.
Afinal, nos perguntamos ao considerar o desenvolvimento de Beth Moysés, em cuja obra percebemos também uma cumplicidade tácita com as mulheres-personagens que aceitam se irmanar com ela em seus eventos: é tão doloroso assim o “ser mulher”?

Na verdade, a mulher através das culturas, religiões e dos séculos aparece sempre como personagem coadjuvante, servente, e não agente. Ainda hoje a prática da ignominiosa circuncisão feminina na cultura islâmica, a escravidão forçosa em paises do Oriente e Oriente Médio, nos quais a mulher não tem o direito de estudar ou escolher seu
companheiro, o tráfico doméstico ou internacional de mulheres, a agressão ou o abuso sexual no mundo de nossos dias, em sociedade ou por pessoas da própria família – ou com ela coniventes – são demonstrações claras de que em todas as classes sociais vigora sempre impunemente o desrespeito à mulher frente a seus direitos como ser humano e cidadã com a mesma dignidade que o homem.

Prova disso é a performance “Removing pain”, que agora a artista apresenta na Irlanda, e em que aborda, de maneira particular, as agressões de que é alvo o ser feminino, não ao longo do tempo, mas em pleno século XXI. Depois de simbolicamente “apagar” as manchas das agressões físicas é enterrado o pano que fez desaparecer as marcas de seu sofrimento, e em seguida, é semeado arroz em torno ao círculo, alusivo ao plantio para uma construção futura, gesto de otimismo e esperança que nutre a humanidade.

Assim, longe de ser uma licença poética aquela praticada por Beth Moysés, uma fantasia de privações recorrentes, trata-se antes de um ato de mobilização, ao expor com clareza a situação da mulher com a delicadeza que lhe é peculiar em sua criativa praxis visual, chamando a atenção para o “medo” em que estremecem as que convivem em situações
permanentes de risco em todos os paises do mundo.

Aracy Amaral
Setembro 2010

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