Memória do Afeto: Da Consolação ao Paraíso

Desde 1994, a artista Beth Moysés assumiu o vestido de noiva como instrumento de articulações simbólicas sobre as relações amorosas e tudo que as cerca.

Primeiro, como num tapete gigante e surreal, forrou o teto de uma capela com um arsenal de vestidos de noiva. Elevados às alturas, eles falavam de promessas, denunciavam expectativas reduzidas a brancas nuvens, demonstravam uma ausência literal de pés no chão. Dependurados pelas saias, sem corpos, recheados com panos, anônimos, os vestidos transpiravam solidão e desencanto e sugeriam um campo minado de lágrimas.

Nesse momento, a crítica desencantada é substituída por uma enérgica performance-manifesto. Os vestidos são finalmente (re)ocupados. Descem ao chão, são habitados pelas mulheres aos quais pertenciam. Por mais velhos, apertados ou folgados, curtos ou longos que estejam agora, ao vestí-los, elas (re)clamam as memórias de amor e afetividade que a simples presença do vestido ritualizava num momento específico do passado.

Os corpos dessas mulheres vestidas de noiva caminham hoje pelas ruas e avenidas num percurso em que as promessas do passado se mesclam e reivindicam concretização no futuro. Que todo sonho embutido no símbolo do vestido branco se torne a bandeira da paz, do amor e da solidariedade a espelhar e penetrar o agora em diante.

Carregando rosas, cujas pétalas são desgarradas e jogadas ao chão, as mulheres parecem querer rastrear uma memória e contaminar o espaço urbano e seus habitantes com sentimentos de paz e afeto. Por fim, à chegada, as hastes nuas das rosas, pontuadas agora somente por espinhos são despejadas numa profunda cratera cavada por suas próprias mãos, na terra. As dores são enterradas num ato simbólico que combina coragem e resignação.

É assim que essa performance-manifesto transcende os limites da arte e ganha um significado de urgência amorosa dentro de um universo de violências cotidianas, que começa nas relações familiares e contamina todos os tipos de situações na vida da cidade.

Que as mulheres vestidas de branco possam completar seu percurso, contagiando outras pessoas pelo caminho. Que possam de fato enterrar seus espinhos.

E que esse caminho substitua uma atitude resignada, de consolação, e clame por um estado tomado por uma generosa e contagiosa afetividade. Que ele seja seguido.

Katia Canton
Crítica de Arte

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