Auscultame

Para Beth Moysés, investigar o caráter do abandono, dos maus tratos, da violência doméstica, da perda de confiança em si e no outro — que se manifesta como marca indelével de um registro oficial contratado entre partes — parece ser a estratégia ficcional de sua intervenção em distintas realidades. Auscultame revela, de um corpo sobrevivente que abriga todas as dores do mundo, o intenso indício de exposição do ser. A escuta, entre cada palavra, indica um interstício nebuloso que oculta a dimensão consciente de um gesto oscilante entre desesperança e amor. Almas prematuras, a incubadora suspensa, expõe, da dor, a dor inconsciente de todas as presumíveis perdas que serão consumadas em vida e em morte. O artifício mecânico — a incubadora, ou o depósito legítimo de todas as seqüelas e plenas ausências projetadas no espaço doméstico –, como que incorporado pela sombra de todos os corações prematuros, ressignifica a vida em circunstância estranha, em um agora contínuo. A dignidade da poética visual de Beth Moysés resiste ao apagamento de dolorosas marcas, quando traduzidas por testemunhos de mulheres sobre desencontros e espasmos do cotidiano. Dessa formulação densa — da violência de gênero entregue ao recurso da recomposição de corpos físicos e psíquicos, processados pelo abandono — surge o testemunho de um compromisso íntimo e confessional que a artista reafirma a cada projeto-documento. O testemunho íntimo — relato comprometido como a própria trajetória de um drama vivo — exposto em fragmento, aberto a agulha e linha vermelha e entranhado em cambraia branca encontra o tempo conflituoso de projetos interrompidos pela realidade de vidas amordaçadas. Desta forma está materializado o diagrama de Cómo cambiar el amor. Corazón tejido, órgão encarnado em músculo e artérias, carrega consigo a narrativa compassada de todo o fluxo sanguíneo, desencontrado em consciência e dor. Empalidecido, confrontado pelo suporte rendado que o recebe e suporta suas dores, o coração acomoda o fim de sua existência nula em significado e afeto e oculta outra existência, contundente, que se manifesta como real protagonista do drama doméstico: a resistência emudecida pelo confronto cotidiano. Corazón tejido instaura a circularidade de todo ato — desprovido de sentido ou amparado pelo sentimento — que redime em tempo cada gesto amargo da convivência e reativa a confiança negociada entre o amor e o desamor.

Claudia Fazzolari

<< VOLTAR/BACK