Diluídas em água

Um elo invisível conecta as performances de Beth Moysés. Cada novo trabalho é agregado ao desenho de um mapa subjetivo, que relaciona mulheres de São Paulo, Sevilha, Salamanca, Murcia, Las Palmas, Montevidéo, Cáceres, Madri, Brasília e, agora, Zaragoza. Essas mulheres, sempre voluntárias e muitas vezes marcadas por situações de violência em relações afetivas, se aproximam em torno de uma poética situada na fronteira da experiência estética e da mobilização social. A artista, propositora das vivências, assume o papel de mediadora entre a intimidade emocional e o espaço social. Quase sempre encenadas nas praças públicas e nos centros nevrálgicos das cidades, as ações celebram uma espécie de expiação dos reveses e abusos praticados contra a mulher. E, na medida em que os males são simbolicamente enterrados, queimados, lavados e dissolvidos no coletivo, evoca-se aqui a origem ritualística da performance artística.

Os rituais propostos por Beth Moysés têm introdução solene. A entrada, em cortejo, é o momento de apresentação das personagens: sempre mulheres, sempre vestidas de branco, sempre uma expressão grave no semblante, sempre um objeto nas mãos. Na caminhada, há a evocação de uma memória de comunhão. Mas esses não são os mesmos passos que conduziram noivas ao altar. No final do trajeto, a aliança que se estabelece é outra. Organizadas em roda, as participantes estão prontas para trocas e transformações. O círculo favorece o fluxo e a circulação dos conteúdos que serão processados durante a ação. O ápice do ato é a destruição dos objetos, sejam eles rosas, novelos de lã, luvas bordadas ou esponjas de cozinha, são ex votos, que representam histórias pessoais a serem superadas.

Diluídas em água, a performance concebida para a cidade de Zaragoza, assume um caráter de purificação. Quarenta mulheres participam da ação, mas vinte delas permanecem ocultas, resguardadas em seus abrigos e esconderijos. Essas mulheres, que possuem um histórico de agressões, escrevem seus pensamentos em roupas brancas, que serão vestidas por outras vinte mulheres e levadas ao espaço público da performance. À água cabe revelar os pensamentos vermelhos ocultos sob o branco dos vestidos. No gesto de lavar, enxagüar e torcer a roupa para extrair da cor branca o vermelho, evidencia-se a relação do trabalho com as “alianças pelo sangue” dos ritos sacrificiais.

As performances de Beth Moysés contêm três idéias irredutíveis: a intervenção, a expiação e a reconstrução. Água, fogo, terra, ou outros elementos utilizados no processo, vêm evocar a memória e restabelecer um sentido de integridade. De fato, decorre dessa poética uma restauração, que pode ser pressentida em âmbito pessoal (com a alimentação do afeto e da auto-estima das participantes), mas principalmente no âmbito social. Afinal, a experiência estética da performance vem devolver às mulheres a expressão de sua potência.

Paula Alzugaray
junho de 2008

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