Por meio do vagar das protagonistas de suas performances, entre vestes desfeitas e símbolos esvaziados, da paleta ruidosamente carregada de suas pinturas e do olhar irônico abrigado em seus trabalhos tridimensionais, Beth Moysés cria, pouco a pouco, o corpus de uma obra política bastante particular no Brasil. Reconhecida e presente em coleções importantes da Espanha e convidada para variadas participações em mostras e bienais continentes afora _ ajudando a compor paisagens femininas potentes pela diversidade, dos alvos rostos de irlandesas e espanholas às mulheres morenas de Panamá e Brasil, por exemplo _, a artista paulistana parece encontrar pouco eco em seu território natal. Num país que forjou um conceito tão contraditório como ‘racismo cordial’, é compreensível. “O Brasil é refratário à discussão das diferenças no campo da arte: mulher, homem, negros, índios, brancos, japoneses, judeus, muçulmanos, homossexuais, colonialismo interno, pluralidade cultural, estrutura de classes. É cool rejeitar de antemão. Nesse sentido, o sistema de arte brasileiro não é ‘politicamente incorreto’, mas antidemocrático”1, aponta Paulo Herkenhoff, a respeito da coletiva Manobras Radicais, em 2006, com curadoria dele e uma das raras incursões sobre tal discussão de gênero na área das artes visuais por aqui.
A abordagem de Beth Moysés transita entre um excesso quase barroco _ trilha sonora sublinhada em boa parte dos vídeos; o uso de cores a berrar, em especial o vermelho, em distintos suportes; a reiterada utilização de símbolos de uma edulcorada pacificação entre o masculino e o feminino, como o vestido de noiva, em muitas linguagens _ e um desenvolvimento mais silencioso _ a errância nada barulhenta e ordenada das participantes, algo fantasmáticas, das performances; a formalização dissolvida, incompleta e permeável de elementos de tais ações, como os escritos que desaparecem, após lavagem, do vestuário das mulheres de Diluídas em Água, por exemplo. Sobre esse último trabalho, em Mi Pueblito, Panamá, em 2013, ressalte-se uma das versões mais interessantes da obra, com o centro da performance se constituindo numa fonte pública, originalmente destinada a ornar um lócus folclórico-turístico do país centro-americano.
Entre a dissonância e o murmúrio, a específica situação feminina das vítimas de violência em âmbito nacional ainda perturba. Mesmo que tenham sido estabelecidas legislações protetivas como a Lei Maria da Penha (2006) e instituições em defesa dos direitos da mulher, lançando mão de casas-abrigo, casas da mulher e locais com funções similares, a denúncia ainda é minimizada. “Mais grave do que sofrer calada é ir à delegacia e ouvir do delegado: ‘Vou pedir a medida protetiva. Pode voltar para casa’. Ela volta para casa e a medida nunca é expedida”2, declara Eleonora Menicucci, titular da Secretaria de Políticas para as Mulheres, órgão federal.
E a artista paulistana registrou essa espera angustiante numa série de desenhos, Mulheres Divididas (2004), em que chinelos e calçados de salto baixo se sobrepõem em linhas e volumes como a frisar a zona de desconforto retratada. A técnica volta a ser exibida por ela na série que formou a exposição Hilo Conductor (2013), apresentada em Sevilha, Espanha. Nesse recente conjunto, Beth Moysés conduz a priori mais placidamente o grafite, com linhas de costura, pontos, cerziduras, rasgos, furos, dedais, agulhas e coisas afins dominando a superfície. No entanto, a calma é enganadora. Logo parece que algo vai ser ferido e colapsar tal estrutura aparentemente estável.
O vídeo e as fotografias que compõem Coral Celestial (2013) também ostentam tal quietude tensa. Por meio da coleta de depoimentos de padres que ouvem com frequência confidências de mulheres que sofrem cotidianamente violência doméstica, a artista une planos com os lábios das vítimas, a estrutura quadriculada de madeira que separa sacerdote e confessor e a voz em off dos religiosos, sempre incentivando a procura de ajuda oficial para acabar com a dolorosa situação. Mesmo que os titulares da Igreja Católica estejam mais avançados _ rememore-se a vigorosa atividade da Inquisição contra as mulheres nos países ibéricos _, um contínuo estado de incômodo não cessa ao finalizarmos a visada sobre as obras.
“É preciso considerar que as questões relacionadas ao corpo e à sexualidade feminina ainda são assuntos muito delicados na política das relações internacionais. Por quê? Ora, porque a desigualdade de gêneros persiste. O corpo e a sexualidade feminina são sempre alvo de controvérsias, pois são os principais campos de batalha para conservadores e progressistas no mundo inteiro”3, argumenta a canadense Françoise Girard, presidente da International Women’s Health Coalition.
Se os fatos corroboram para a inquietude que permanece no observador mais atento _ assim como o som ininterrupto dos aparelhos hospitalares na performance Huecos del Alma (2008), talvez uma das mais bem-sucedidas incursões da artista nessa linguagem _ , traz regozijo perceber que uma série de novas artistas, com investigações bem diversas, dialogam com a produção de Beth Moysés. O campo de batalha ainda está aberto para o sensível, mesmo que o tento final, esperemos que positivo ao feminino, ainda esteja longe de ser alcançado.
Mario Gioia, maio de 2013
Graduado pela ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), coordena pelo terceiro ano o projeto Zip’Up, na Zipper Galeria, destinado à exibição de novos artistas e projetos inéditos de curadoria. Foi o curador de Ela Caminha em Direção à Fronteira, de Ana Mazzei, primeira individual da série de exposições Zip’Up em 2012 (nesse ano, também houve Lugar do Outro, de Julia Kater, Transmission, de Geraldo Marcolini, Íntima Ação, de Carolina Paz, Planisfério, de Marina Camargo, Requadros, de Mariana Tassinari, e a coletiva Imagem Mi(g)rante). Em 2012, também fez as curadorias de Incerto Limite, de Shirley Paes Leme (Bolsa de Arte, Porto Alegre); Miragem, de Romy Pocztaruk, e Distante Presente, de Gordana Manic (ambas na galeria Ímpar). Em 2011, inaugurou o projeto Zip’Up com a coletiva Presenças (que teve como outras mostras Já Vou, de Alessandra Duarte, Aéreos, de Fabio Flaks, Perto Longe, de Aline van Langendonck, Paragem, de Laura Gorski, Hotel Tropical, de João Castilho, e a coletiva Território de Caça, com a mesma curadoria). Em 2010, fez Incompletudes (galeria Virgilio), Mediações (galeria Motor) e Espacialidades (galeria Central), além de ter realizado acompanhamento crítico de Ateliê Fidalga no Paço das Artes. Em 2009, fez as curadorias de Obra Menor (Ateliê 397) e Lugar Sim e Não (galeria Eduardo Fernandes). Foi repórter e redator de artes e arquitetura no caderno Ilustrada, no jornal Folha de S.Paulo, de 2005 a 2009, e atualmente colabora para diversos veículos, como as revistas Bravo e Bamboo e o portal UOL, além da revista espanhola Dardo e da italiana Interni. É coautor de Roberto Mícoli (Bei Editora) e faz parte do grupo de críticos do Paço das Artes, instituição na qual fez o acompanhamento crítico de Black Market (2012), de Paulo Almeida, e A Riscar (2011), de Daniela Seixas. É crítico convidado do Programa de Fotografia 2012/2013 do CCSP (Centro Cultural São Paulo).
1. BUARQUE DE HOLLANDA, Heloisa e HERKENHOFF, Paulo (org.). Manobras Radicais. São Paulo, Centro Cultural Banco do Brasil, 2006, p. 17
2. ARBEX, Thais. O crime contra a mulher está mais cruel. O Estado de S.Paulo, Caderno 2, 25.mar.2013, p. D2
3. SAYURI, Juliana. Não ande sozinha? O Estado de S.Paulo, caderno Aliás, 10.mar.2013, p. J5