Paço das Artes (PT)

É como o dia do casamento para a noiva. “Memória do Afeto” é uma obra de apenas algumas horas de duração  mas tem o impacto do meteoro que nocauteia o Papa na famosa instalação de Maurizio Cattelan. Isso acontece em vários trabalhos efêmeros de Beth Moysés. A comparação com o artista italiano é propositada: em “Ausência de Alma” (1998), que permaneceu dois únicos dias no Parque da Independência, um vestido de noiva moldado em resina encenava um corpo caído e contorcido de dor. O assombro desta queda irremediável de um ícone guarda semelhança com o da peça “La Nona Ora”, de Cattelan.

Em relato sobre o trabalho de 1999, o artista afirma que quando foi instalar pela primeira vez a escultura de cera, levou dois dias para decidir pôr as mãos no “corpo” do Papa João Paulo 2º. Em princípio a instalação consistiria em posiciona-lo de pé no meio de um espaço imenso, mas então Cattelan percebeu que algo mais deveria ser feito. O que era para ser um gesto cínico tornou-se um desafio: confrontar um símbolo “sagrado”, fazer colidir religião e blasfêmia para falar de uma vida cotidiana ditada por contradições.

O vestido de noiva manipulado por Beth Moysés inscreve-se no mesmo ideário. Confrontado com o teste de realidade que se segue ao casamento, o símbolo termina por assumir configuração oposta: o fantasma de noiva estendido na praça é o negativo da postura triunfal da mulher entrando na Igreja com passo lento e aura de esperança que não conhecerá paralelo no restante de sua vida. Esse “corpo” que era oco em “Ausência de Alma” e vaporoso em “Forro de Sonhos Pálidos” (1996), quando a artista preencheu o teto da Capela do Morumbi com vestidos de noiva entrelaçados, assumiu substância concreta com a performance “Memória do Afeto” (2000).

Eram mais de cem mulheres fantasiadas de noiva. O branco do vestido contrastava com o cinza da cidade assim como a displicência das mulheres com a cauda do traje varrendo a imundice da rua contrastava com o zelo que costuma cercar a fantasia. Caminharam em silêncio pela avenida Paulista despetalando rosas brancas ao longo do trajeto. Todos os vestidos utilizados na performance estavam “impregnados de memória”, pois foram coletados entre conhecidas da artista e em lojas de roupas usadas. “O encontro do tempo retido com o tempo vivido”, nas palavras de Beth Moysés, reflete a contradição na vida das mulheres. No final do trajeto um enterro simbólico do passado: o que restou dos buquês (os espinhos) foi jogado em um buraco na praça Oswaldo Cruz e recoberto por terra pelas próprias noivas empunhando pesadas pás.

A performance ocorreu no Dia Internacional da Não Violência Contra a Mulher e a maioria das participantes era vítima de violência doméstica, principalmente integrantes da Organização das Mulheres Independentes do Jardim São Francisco, bairro na periferia de São Paulo, conseqüência natural de uma produção sempre voltada para o tema da violência ao utilizar como matéria-prima o vestido de noiva. “É como se eu tirasse ele da caixa e recuperasse o afeto que ficou retido naquele vestido, a felicidade do dia em que uma mulher se propõe a viver com alguém. Ao resgatar esse sentimento, busco confrontá-lo com o dia-a-dia dessas mulheres, com o que sofrem dentro de uma sociedade patriarcal”, afirma, referindo-se à história da violência contra a mulher, que a artista pesquisa em sua tese de Mestrado.

Um dos dados alarmantes com que se confrontou, por exemplo, é que 85% das vítimas da Inquisição eram mulheres. “A Igreja foi cúmplice dessa violência, uma instituição que ditou regras que escravizaram a mulher durante muito tempo. Em 1215, quando a confissão tornou-se obrigatória, a Igreja começou a controlar as relações matrimoniais. E o controle se mantém até hoje. Eu ouvi de mulheres na delegacia -que recorreram primeiro ao confessionário para dizer que estavam sendo vítimas de violência- que o discurso dos padres é o mesmo de então: ‘você precisa ter resignação, você precisa aceitar’, uma delas disse assim: ‘mas eu pensei em procurar a delegacia da mulher’ e ouviu como resposta ‘o que você tem é que rezar muito e pedir perdão por todas as vezes em que você pensou em se separar desse marido, você tem que ajuda-lo’.”

A exposição que Beth Moysés apresenta no Paço das Artes como artista convidada da Temporada de Projetos alinhava o percurso da obra que foi da história pessoal para a experiência coletiva e social. A obra mais antiga é “Luta” (1998), luvas de boxe forradas de cetim e bordadas com pérolas e outros adereços de vestido de noiva. O objeto prenuncia a cena belíssima da noiva empunhando uma pá no registro da performance na avenida Paulista, prenuncia a questão da luta travada entre quatro paredes, que do ambiente íntimo e privado a artista viria a fazer extravasar para o espaço público. Mas guarda ainda o caráter do fazer intimista dos trabalhos anteriores, porém não menos emancipador. Louise Bourgeois já dizia: “sempre tive um fascínio pela agulha, pelo poder mágico da agulha. A agulha é usada para reparar o estragado. É um grito contra o esquecimento”.

O trânsito do individual ao coletivo na trajetória de Beth Moysés fica mais evidente na obra “Almas Prematuras”, uma incubadora que contém 200 corações de argila. A peça fica em um ambiente feito com um pano branco, de vestido de noiva, e funciona como uma sala de passagem que leva até o vídeo “Despontando Nós”, feito com as mulheres do grupo do Jardim São Francisco, com quem a artista passou a trabalhar regularmente desde a performance na avenida Paulista. O pano de fundo são caules de rosa, o primeiro plano as mãos calejadas quebrando os espinhos. A artista pedia que as mulheres pensassem no que elas haviam passado e retirassem os espinhos. O som é apenas o barulho seco dos espinhos, tratado em estúdio. Às vezes lembra o som de um tiro, às vezes das batidas de um coração.

A escolha de uma incubadora como matéria-prima evidencia o propósito de salvar: “É como se eu falasse de uma alma em processo neste trabalho”, explica a artista, “se esses corações não estivessem dentro de uma incubadora, meu trabalho não existiria. Se as almas não estivessem em processo, se elas já tivessem evoluído o suficiente, no sentido de ter atingido realmente a capacidade de amar –porque quem ama não violenta-, não faria sentido fazer o trabalho que eu faço”. A obra sinaliza um amadurecimento, fala do presente como um período transitório, como um período que tende a melhorar.

A obra “Rainha” (2000), que coloca em um tabuleiro de xadrez com casas de uma única cor a rainha trespassada pelo rei, cuja peça está ausente, trata da mesma utopia, colocando em questão uma possível inversão do poder. As leituras são múltiplas: o símbolo do feminino contém seu oposto ou carrega a memória dele como um vazio que não se pode preencher? A idéia de amadurecimento, que tornaria o homem mais sensível, é o que está em jogo também na fotografia da série “Noivas do Carandiru” (2000), registro de um casamento coletivo que aconteceu na Casa de Detenção, mostrando uma figura extremamente sofrida que, mesmo assim, quer se vestir de Cinderela, e pode viver, enquanto o marido estiver confinado, seu conto de fadas.

Juliana Monachesi

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