Una pausa

O Instrumento perfuro-cortante: a agulha e a afirmação da escala ampliada

“E era tudo silêncio na saleta de costura” – Machado de Assis

Diante de uma sombra na parede, projetada, vertical e esguia, rebatida por uma agulha metálica – que nunca imaginamos pudesse ganhar tanto em escala – nos perguntamos novamente quantas vezes fomos tocados pela densidade das criações de Beth Moysés.
Apoiada na parede da sala, a agulha metalizada aqui não cumpre mais sua função: não descansa tranquila no espaço da domesticidade onde sempre se manteve entre costuras e bordados, não perfura os corpos, não aborta ou atualiza o drama do espaço cirúrgico, não ativa a dor recorrente, não marca a pele, não se desloca fisicamente abrindo e/ou fechando…
A obra em questão, Una pausa, de 2016, parece subverter representações culturais consolidadas e perspectivas correntes estabelecendo um roteiro de desencontro para o agigantado objeto metálico quando manobra sua dramática carga autoral no espaço.
Construir outros sentidos, desviados de uma habitual condição subalterna, de uma internalizada disposição coadjuvante representa o eixo central desta proposição da artista.
Beth Moysés instaura com a sua criação um debate, e mantém articuladas zonas de conflito abertas pela indignação, diante do apagamento cotidiano das subjetividades quando aciona a memória dos estragos, dos esgarçamentos potencialmente recompostos pela ação da agulha.
Na sala expositiva a agulha recorda que existem muitas outras subjetividades criadas pela sua onipresença: atua como elemento insistente que rememora além da dor coletiva de todos os seus atributos a condição de uma existência projetada em outra chave analítica. Rompendo assim um elo do espaço da domesticidade, o objeto metálico reafirma uma estratégia criada para que sua presença corriqueira passe agora a incorporar outra personalidade e caráter.
Encostada na parede, a agulha atualizada pelo pensamento plástico da artista, ativa a dimensão sensível de uma agravada ameaça: não mais resignada ao doméstico ou ao espaço de trabalho marcado pela majoritária mão de obra feminina, investe contra nossa resignação resistindo ao lugar que a ela é atribuído em relações desiguais e assim recomeça o confronto.
Enquanto silenciosamente investe contra o entorno, seja pela ampliada escala, seja pela dimensão incômoda de sua inutilidade – afinal esse instrumento perfuro-cortante não cumprirá sua ameaça física – simplesmente rememora a participação no suplício de uma vida ativa junto às mazelas de uma desencantada domesticidade atuando servilmente no cotidiano.
Há tanto tempo servindo ao suplício – essa forma de penalidade dolorosa – em sua dimensão física e psíquica, a agulha interroga o olhar incauto daqueles que confiaram em sua presença conciliadora. Agora emancipada pela criação de Beth Moysés, sequer atua como virtual reparadora dos estragos corriqueiros, dos desfazimentos emocionais, das confianças desfeitas.
Em oposição à superficial compreensão da dor física e psíquica, a escala aqui reafirma a persistência de sua insurreição, além dos nortes de qualquer disposição calculada, pela lucidez de sua criadora, comprometida com os intervalos insistentes entre sua existência e a dor, a obra nos adverte sobre as lapsos de outras formas de vida correntes na contemporaneidade.

Claudia Fazzolari

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